Vidas Passadas: os sonhos envelhecem?

Vidas Passadas: os sonhos envelhecem?

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No último dia 10 de março acompanhei mais uma entrega do Oscar. Como estou de visita na casa da minha mãe, vimos juntos, como na transmissão mais antiga que eu tenho na minha memória, a de 1991, vencida por Dança com Lobos.

Se busco em minhas lembranças outras premiações pela TV, lembro de um ano onde compramos algumas besteiras no supermercado para acompanhar a entrega. Me recordo também de vencer o Oscar umas duas ou três vezes, segurando o xampu no banho, agradecendo “a todos que me apoiaram”.

Depois, já adolescente, comecei a pensar qual protesto político faria caso ganhasse, para o mundo inteiro escutar. Já adulto, passei a levar menos a sério, entendendo a particularidade daquele universo como algo feito pela e para a indústria cinematográfica dos EUA, numa festa onde os desviantes são apenas convidados ocasionais. Mas segui vendo todos os anos, talvez como uma lembrança do passado.  

O meu filme preferido do Oscar 2024 entre os indicados, Vidas Passadas, de Celine Song, provavelmente não venceria nada; isso eu já sabia desde o tapete vermelho, enquanto minha mãe me informava quais vestidos eram bonitos e quais eram cafonas. O filme é uma produção estadunidense e reflete muito da vivência como imigrante da realizadora, que imigrou para o Canadá, ainda na infância, e depois para os EUA. 

Escadarias verdes

Eu tinha 12 anos em 1994, quando o grande ganhador foi A Lista de Schindler. Uma das protagonistas de Vidas Passadas, Na Young, inicia o filme também com 12 anos, quando ainda vivia em sua Coreia do Sul natal.

Em uma cena na escola, durante a primeira parte do filme, ela responde a colegas curiosos sobre os motivos de estar imigrando com a sua família para outro país, no caso aqui o Canadá:

“- Você realmente está indo embora?

– Sim.

– Você nunca vai voltar?

– Não.

– Por que você está indo?

– Porque eu quero.

– Por que você quer ir embora? 

– Porque os coreanos não ganham o Prêmio Nobel de Literatura”.

Ao longo deste curto diálogo, a câmera vai se deslocando do fundo da sala para uma carteira mais à frente, onde se encontra seu grande amigo Hae Sung. Através de um suave travelling, a menina Na Young e seus questionadores vão sendo desfocados aos poucos, para dar lugar à triste expressão de Hae Sung, agora no foco, em primeiro plano.

Assim como a filha, sua mãe também não está disposta a dar muitas satisfações objetivas sobre a decisão da família em se mudar para outro país. Em uma cena anterior à da escola, ela conversa com a mãe do amigo Hae Sung, que também a questiona:

“- Vocês vão embora?

– Sim.

– Mas por quê? O pai de Na Young é um diretor de cinema e você é uma artista. Por que vocês deixariam tudo para trás?

– Se você deixa algo para trás, ganha algo também.”

Enquanto as mães conversam, sentadas em um banco, Na Young e Hae Sung brincam alegremente no parque, interagindo com obras de arte ao ar livre. Para a mãe da menina era importante dar à sua filha um bom último momento de recordação em seu país, por isso mesmo está congelando aquele instante ao fotografar os dois, que vivem um inocente namorico pré-adolescente.

Na última caminhada lado a lado de Na Young e Hae Sung, da saída do colégio para casa, o menino Hae Sung anda em silêncio, transparecendo tristeza. Em suas fechadas feições, que nos convidam ao deciframento, Hae Sung também demonstra uma leve raiva, quem sabe também algo de incompreensão por perder sua amiga querida. Na Young, inicialmente sorridente com a grande aventura que se aproxima, vai mudando a sua expressão para um misto de piedade e constrangimento ao longo das ladeiras do caminho, frente à reação dolorida de Hae Sung com sua partida.   

Depois de uma reticente despedida final, se separam em uma bifurcação que conduz a dois caminhos diferentes, para seus respectivos lares. Filmados de costas, no enquadramento aberto de um plano geral, Hae Sung segue de um lado, em um caminho quase plano, enquanto a menina Na Young sobe longas escadarias verdes.   

“Também se chamava estrada”

O verso “E sonhos não envelhecem”, da canção Clube da Esquina nº 2, acabaria se tornando um dos maiores símbolos do movimento musical mineiro que leva o mesmo nome da música. A melodia foi composta em 1972 por Milton Nascimento e Lô Borges, data da primeira gravação instrumental, no disco Clube da Esquina. A letra veio depois, pelas mãos de Márcio Borges, para o disco de Nana Caymmi de 1979.

Lô e Milton não queriam letra na música, portanto foi necessária a realização de um trabalho secreto do próprio irmão do primeiro, Márcio Borges, a pedido de sua amiga Nana. Perante a beleza do resultado, os dois autores originais não tiveram outra opção que não aceitar, incorporando também Clube da Esquina nº 2, com a letra de Márcio, em seus repertórios.

O Clube da Esquina nº1 falava justamente da união daqueles jovens músicos em suas esquinas, dividindo “a noite, a lua e até solidão”. Agora, já consagrados, se mudam para outras grandes capitais, percorrem o país com suas criações.

Se no filme Vidas Passadas Na Young e sua mãe respondem questionamentos sobre a sua viagem, na letra de Márcio Borges vemos respostas a perguntas que não conhecemos, ocultas na letra. Seriam também sobre viajar, estas perguntas invisíveis para as respostas que abrem a canção?  

♫ “Porque se chamava moço/ Também se chamava estrada/ Viagem de ventania/ Nem lembra se olhou pra trás/ Ao primeiro passo asso asso …/

Porque se chamavam homens/ Também se chamavam sonhos/ E sonhos não envelhecem.” ♫

Márcio Borges se envolveu com a militância política contra a Ditadura Militar, como contou em depoimento*. Seus sonhos e de sua geração, mesmo “em meio a tantos gases lacrimogênios, ficam calmos”, de uma “chama” que “não tem pavio”, por isso mesmo nunca se apaga. 

Com o envelhecimento do tempo e dos corpos daqueles músicos, a frase “os sonhos não envelhecem” foi ganhando ainda mais peso, nesta força que vai além das limitações do corpo, vencendo barreiras físicas, políticas e geográficas.

Sonhar em coreano

Despois da introdução de Vidas Passadas, na infância dos protagonistas, a realizadora Celine Song nos traz outras duas partes, mostrando dois momentos futuros na vida de Na Young e Hae Sung, separados temporalmente por elipses de 12 anos. 

Em determinado momento do filme, Hae Sung pergunta a uma já adulta Na Young sobre o seu antigo sonho de vencer o Nobel de Literatura. Com o passar dos anos, ela parece não se preocupar tanto com isso. Já trabalhando com escritora, responde de forma reticente a Hae Sung, afirmando talvez agora querer ganhar um Pullitzer e, 12 anos depois, sua resposta é o prêmio teatral Tony Awards.

“Se você deixa algo para trás, ganha algo também”, havia dito a sua mãe. Na Young segue a sua vida agora nos EUA, com conquistas e transformações. Algo importante a ser observado é o deslocamento do lugar do sonho. Geralmente em narrativas sobre imigração, algo muito fortalecido pela ideologia estadunidense do “sonho americano”, ele está somente no destino, no Eldorado de um mundo aberto a muitas oportunidades, longe da terra natal. Aqui, em Vidas Passadas, a coisas se complexifica.

Esta perspectiva de buscar o sonho em outro lugar está presente, é correto, desde o início do filme, quando a ainda menina Na Young conta que precisa se mudar para outro lugar caso deseje um dia vencer o Nobel. Entretanto, por mais que ela tenha mudado o seu nome para Nora e passado a usar cada vez menos o seu idioma, ela fala em coreano durante os seus sonhos, ao dormir.

Hae Sung, seu velho amigo e amor em possibilidade, é para Na Young a lembrança de seu lugar, de um passado que acabou se esvaindo com seus anos no estrangeiro. Seu amigo aparece como a nebulosa volta de uma identidade que ela precisou, em algum nível, deixar para trás, assim como fez com seu costume de chorar.

Embora não haja, no filme, um maniqueísmo simples entre uma vida real cotidiana desesperançada, em oposição a um mundo onírico de felicidade imaginada, pode-se dizer que o amigo Hae Sung a lembra da menina sonhadora que ela foi um dia.

O ponto central da obra de Celine Song é exatamente este conflito vivido por Na Young. Teriam os sonhos da personagem envelhecido ou seriam exatamente estes sonhos os responsáveis por fazer dela quem ela é?

Vidas Passadas, evidentemente, pode ser considerado também um filme de romance, mas toma emprestado algumas convenções de gênero, apenas para subvertê-las, como no caso da viagem separando o casal e o retorno do amor do passado. Mais diretamente, o filme discute essas convenções de forma até metalinguística, em especial na forma como trabalha um típico personagem destes filmes, o do marido ou namorado que é visto como um obstáculo para concretização do casal idealizado de protagonistas.

O filme fala de amor, mas também sobre como o tempo afeta estes sonhos de quando somos jovens. Fala sobre este eterno conflito entre desbravar o novo, por um lado, e o medo de perder a identidade de seu lugar, por outro. Fala sobre a razão de existirmos no mundo.

E tudo isso é representado através de uma poética cinematográfica bela, de precisão milimétrica. Celine Song, como ocorre também com alguns outros compatriotas coreanos, sabe exatamente o que filmar, como enquadrar, que movimentos de câmera utilizar, o que mostrar e o que não mostrar, quando deixar o fluxo do momento e quando cortar; sabe se valer dos sons e dos silêncios, da música e da ausência dela.

Sei que a recomendação para uma boa crítica cinematográfica é não exagerar na adjetivação. No lugar de dizer que algo é bom, é melhor explicar o porquê daquilo ser bom. Eles não errados e não deixo nunca essa perspectiva de lado ao escrever. Mas somente preencher de significações diretas, explicando momentos fílmicos onde as sensações nos arrebatam de forma não-consciente, pode esvaziar um pouco nossa experiência.

Em um dos mais longos planos-sequência do filme, Hae Sung e Na Young passeiam em um bonito ponto turístico de Nova York. A cena se inicia com um grande plano geral, que acompanha os dois, ao longe, numa nova caminhada, agora de dois adultos. Filmado de cima, com uma grua, a câmera vai se deslocando lentamente da direita para a esquerda, acompanhando os passos, terminado com uma descida, ao final. Hae Sung e Na Young vão colocando os assuntos em dia na caminhada, enquanto se aproximam mais da câmera; e o filme, sem cortar, acompanha todo o trajeto, desde longe, até chegar a um primeiro plano próximo, enquanto o tema falado vai se aprofundando, com os inevitáveis incômodos da realidade.

A poética de Celine Song nos proporciona um estado de reflexão melancólica, dentro de uma proposta aonde o realismo confronta-se com a idealização. Nos destrói, ao mesmo tempo em que nos encanta. Não deixa nunca a vida real desaparecer do quadro, mas também reivindica o direito de sonhar.

Em 2020, cerca de duas décadas depois do tempo histórico fílmico onde a menina Na Young dizia que “coreanos não ganham o Prêmio Nobel de Literatura”, o mundo se surpreendeu alegremente com a vitória de Parasita, de Bong Joon Ho no Oscar de melhor filme. Para quem, como eu, acompanhava há muitos anos a premiação, a possibilidade de um filme falado em língua não-inglesa vencer o prêmio principal da Academia (além de outros cinco) era algo como um sonho distante.

Parasita já havia vencido a Palma de Ouro no Festival de Cannes, evento que tem um olhar mais abrangente para o cinema mundial, diferente da Academia. Em seu discurso, Bong Joon Ho recomendou ao público estadunidense: “se vocês superarem a barreira de dois centímetros, que são as legendas, vocês serão apresentados a muitos filmes incríveis.”

O olhar enamorado de Bong Joon Ho para a estatueta, o anúncio do vencedor para uma plateia em êxtase, são momentos para nunca esquecer. Quando estou triste, sempre coloco no You Tube para ver mais uma vez.

Parasita nos proporcionou um instante de alegria e catarse, sem imaginarmos toda a dor que o mundo iria enfrentar através de um vírus que já se aproximava da vida de todos.

O fenômeno de Parasita não surge do nada. É resultado de muito anos de investimento da Coreia do Sul em políticas culturais, incentivando o crescimento do cinema, da música e de outras áreas. Os sonhos não são apenas um resultado da vontade individual, necessitam de oportunidades para serem realizados. Para Na Young, de Vidas Passadas, o fato de vir de uma família de artistas também fez a diferença que outras jovens talvez não teriam.

O seu sonho do Nobel de Literatura ainda existe como semente de quem ela foi e de quem ela será. O prêmio pode ser apenas um símbolo, que nunca vai representar de fato o valor da arte de Na Young ou Celine Song.

Para alguns, o sonho pode ser um prêmio ou outra forma de reconhecimento; mas, para outros tantos, o sonho pode ser somente conseguir um dia pagar o aluguel fazendo algo que realmente acredita e sabe fazer bem.

♫ “E lá se vai mais um dia/ E basta contar compasso/E basta contar consigo/ Que a chama não tem pavio”. ♫    

Gabriel de Barcelos Sotomaior

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* Depoimento de Márcio Borges.

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