“Quando foi publicada, Lolita parecia infame, depois se tornou famosa, mas sempre foi controversa, sempre foi um tema de discussão”
Esta afirmação é da jornalista e escritora estadunidense Sarah Weinman e está em A verdadeira Lolita: o sequestro de Sally Horner e o romance que escandalizou o mundo*. Publicado em 2018, o livro é resultado de um trabalho de mais de quatro anos em busca da história de Sally Horner. A jovem, vitimada por uma série de crimes no final dos anos 1940, foi provavelmente uma importante inspiração de Nabokov na escrita de Lolita, especialmente em sua segunda parte.
Lançado no ano de 1955 pelo escritor russo radicado nos EUA, Vladimir Nabokov, Lolita é considerado um dos principais romances do século 20, mas sempre esteve imerso em diversas polêmicas. A história do narrador, Humbert Humbert, e o seu contato com a menina Dolores, de 12 anos, foi um verdadeiro escândalo na sua época, ao mesmo tempo em que ajudou a produzir um olhar sexualizante para meninas e adolescentes, dentro da cultura de massa.
Em uma extensa pesquisa, através de documentos oficiais, entrevistas, jornais, revistas, livros e mesmo arquivos pessoais de Nabokov, Sarah Weinman procura responder sobre esta possível influência de um caso real em Lolita. Os indícios sobre esta inspiração vão desde uma menção direta ao caso Sally dentro no romance, através do narrador, até uma nota escrita por Nabokov sobre o caso, durante o processo de escrita.
A investigação da autora levanta vários pontos que vão além de um mero interesse sobre bastidores da produção do celebrado livro. A verdadeira Lolita traz também contribuições para a análise literária do romance, especialmente em relação à voz narrativa e, acima de tudo, como Weinman faz questão de frisar ao longo de seu livro, tem como objetivo jogar uma necessária luz sobre a história de Sally Horner.
O sequestro
Florence “Sally” Horner tinha 10 anos na primavera de 1948. Era boa aluna e por isso costumava estar presente no quadro de honra de sua escola em Camden, Nova Jersey. Também pertencia à Cruz Vermelha Juvenil, onde era voluntária em hospitais da localidade.
A sua tutora Sarah Hanlin a descrevia como uma “menina totalmente adorável” e uma “aluna acima da média, inteligente e muito educada”, como relata Sarah Weinman, em A verdadeira Lolita**.
Sally talvez nunca tivesse pensado em fazer algo ilegal, mas vivia aquela necessidade de pertencimento a algum grupo, típica da fase escolar. Por isso, ela aceitou o desafio feito por uma espécie de gangue de meninas: roubar um pequeno caderno de cinco centavos, em uma loja da cidade.
Já com o caderno no bolso, ela foi surpreendida por um homem de meia-idade, que afirmava ser um agente do FBI. Segundo ele, apesar de ter visto o delito em flagrante, a perdoaria naquele momento. A história era mentira e o homem se chamava Frank La Salle.
Sally só reencontraria La Salle meses depois, em junho de 1948, quando havia acabado de completar 11 anos. Ao voltar da escola, ela se depararia com aquele estranho homem, que agora ameaçava levá-la a um reformatório juvenil caso ela não o acompanhasse até Atlantic City, aproximadamente 100 quilômetros dali. Segundo ele, tratava-se de um pedido do governo.
O medo e a inexperiência, perfeitamente compreensíveis em uma criança daquela idade, levaram-na a acreditar nas inverdades ditas pelo desconhecido. Como justificativa, por sugestão do próprio La Salle, ele fingiu ao telefone ser o pai de uma amiga de Sally, conseguindo convencer sua mãe, Ella Horner, a autorizar a viagem. Naquele momento, ele se apresentava como “Senhor Warner”.
Ao final de uma primeira semana fora de casa, Sally telefonou pedindo para ficar mais tempo, pois gostaria de ir ao espetáculo de patinação Ice Folies. A senhora Ella aceitou, em um primeiro momento, mas as desculpas foram ficando cada vez mais vagas ao longo das semanas.
Em 31 de julho de 1948, após finalmente receber uma carta de sua filha contando sobre a saída de Atlantic City com destino a Baltimore, viagem de mais de 240 quilômetros, sua mãe decidiu entrar em contato com as autoridades. Sally já estava há mais de um mês fora de casa.
No dia 4 de agosto, dois policiais foram até Atlantic City, buscando o remetente da correspondência enviada por Sally. Lá descobriram que La Salle usava nomes falsos, além de apresentar-se como pai da menina.
Diante desta situação, no dia seguinte iniciou-se a busca nacional por Sally, através da polícia de oito estados.
O parque de trailers
O caso gerou uma intensa cobertura por parte da imprensa em todo o país, muitas vezes com viés sensacionalista. Mas, passado o primeiro aniversário do desaparecimento, pouquíssimos se lembravam da história.
Enquanto isso, o sequestrador continuava a sua peregrinação pelo país junto à sua vítima, agora indo de Baltimore a Dallas, Texas, viagem ainda mais longa, do nordeste ao sul do país.
Já no início de 1949, ele havia conseguido, como anteriormente, um emprego de mecânico, levando a menina com ele para viver em um parque de trailers. Novamente, também, buscava mudar de nome, devido aos antecedentes criminais que possuía e também por já saber ser alvo de uma busca por parte da polícia.
Sally era matriculada em todas as escolas das cidades onde moravam, mantendo o disfarce de filha e pai, imposto por La Salle. Além de refém em um sequestro, era também vítima de crimes sexuais.
Em Dallas, Sally reuniu a coragem suficiente para contar a uma amiga do colégio sobre o contato com seu “pai” envolvendo “relações sexuais”. Como conta a autora Sarah Weinman, aquela amiga nunca identificada resolveu aconselhar que “aquilo estava errado” e “que deveriam parar”. A partir das palavras da amiga, Sally resolveu rechaçar totalmente as investidas de La Salle, evitando, a partir dali, novos contatos físicos.
“Agora Sally se sentia um pouco livre, ainda que não totalmente”, como narra Weinman. Ela em nenhum momento tentara fugir; optou “por render-se, porque este parecia ser o melhor caminho para sobreviver”.
Até aquele momento, o artifício usado por La Salle de fingir ser o pai de Sally havia funcionado para os seus objetivos e ninguém desconfiara da farsa. Mas isso iria mudar.
Já haviam passados quase dois anos do sequestro quando ambos se mudaram para outro parque de trailers, desta vez em San José, na Califórnia, a convite de uma família vizinha, cujo primeiro contato havia sido em Dallas. Ruth Janisch, que vivia em outro trailer com seu marido e quatro filhos, começou a perceber que havia algo estranho por ali. Ela considerava esquisita a proximidade de Sally e La Salle, assim como o fato da jovem não ter amigos de sua idade. Segundo Ruth, o sorriso de Sally não combinava com o olhar e La Salle mantinha uma relação possessiva com aquela suposta filha.
Na manhã de 21 de março de 1950, Ruth Janisch aproveitou a ausência do sequestrador para convidar Sally ao seu trailer. As suas suspeitas foram confirmadas e a vizinha descobriu finalmente toda a verdade, ao conversar com Sally.
Agindo de maneira rápida e discreta, levou a adolescente para telefonar à sua família. Depois de não ter sucesso em conseguir encontrar sua mãe, Sally ligou para o trabalho de sua irmã, Susan, sendo atendida por seu cunhado, Al Panaro:
“ – Alô Al, é a Sally. Posso falar com Susan?
– Onde você está? Me manda a sua localização exata!
– Estou com uma amiga minha na Califórnia. Mande o FBI me buscar! Diga à mamãe que estou bem e que não se preocupe. Quero ir para casa. Eu tive medo de ligar antes.”
Agentes locais e federais se dirigiram imediatamente ao local, em toda velocidade, enquanto Sally esperava no trailer onde estava vivendo. Ao ver a polícia chegar ao local, pediu de imediato a todos:
“- Por favor me tirem daqui, antes que ele volte da cidade!”
Quando finalmente pôde se acalmar da situação traumática, a menina resolveu contar às autoridades tudo o que havia acontecido. Enquanto isso, Frank La Salle, que voltava de uma busca por emprego na cidade de San José, foi rodeado e rendido por dezenas de agentes antes de conseguir chegar ao seu trailer.
Sally Horner ainda permaneceu alguns dias na Califórnia, sob cuidado das autoridades, até finalmente voltar à sua cidade, Camden, no dia 31 de março de 1950. Como conta a escritora Sarah Weinman, após baixar do avião ela abraçou sua mãe, sem ligar para os vários flashes da imprensa que a cercavam. “Só quero ir para a casa”, disse Sally.
Ainda em abril de 1950, Frank La Salle foi condenado a passar entre 30 e 35 anos na prisão pela acusação de sequestro e outros crimes. Ele morreu na cadeia, de causas naturais, em 1966.
O recomeço e um trabalho de verão
Sally Horner tinha recém-completado 11 anos no dia em que foi sequestrada; agora, voltava para seu lar duas semanas antes de fazer 13.
A polícia havia sugerido à família que mudassem de nome e fossem viver em outro lugar, onde seriam pessoas desconhecidas de todos. A mãe, Ella, acabaria decidindo-se por uma situação intermediária, como conta Weinman: Sally passaria o verão em outra cidade, Florence, com a sua irmã Susan e seu cunhado Al. Lá ela ajudaria a sua irmã a cuidar de sua sobrinha recém-nascida, além de eventualmente auxiliar com as flores e plantas comercializadas por sua família. Ninguém mudou de nome.
Voltando a Camden, matriculou-se na escola. Novamente com dificuldade em fazer amizades, além de se deparar com discursos intolerantes de seus colegas, Sally se refugiava nos livros, uma paixão de sua vida, e sonhava um dia cursar Medicina. Esta solidão seria em parte sanada a partir da amizade construída com Carol Taylor, uma jovem de sua turma que a admirava por seus modos, sua postura sofisticada e por seu amor à literatura.
Já passados dois anos do sequestro e faltando algumas semanas para Sally e Carol entrarem no ensino médio, resolveram aproveitar de maneira especial o fim das suas férias. Em 1952, então, partiram para um trabalho de verão, na cidade litorânea de Wildwood, também em Nova Jersey. Como conta a autora Sarah Weinman, elas eram melhores amigas e lhes restava pouco tempo para uma etapa escolar mais exigente, portanto, pensaram: “por que não dar uma breve escapada para Wildwood?”.
Além de conseguir uma renda extra, as duas amigas conseguiam tempo para a diversão naquele balneário muito apreciado pela juventude das redondezas, seja indo à praia ou dançando nos agitados bailes locais.
Foi num destes momentos praieiros em que Sally, que contava então com 15 anos, conheceu Edward Baker, um rapaz de 20 anos, alto e de cabelos negros. Edward, que viajava todos os fins de semana para Wildwood em seu carro, chamou de imediato a atenção de Sally. Como afirma a escritora Sarah Weinman, ele aparecia como uma espécie de antídoto para problemas pelos quais Sally gostaria de se afastar. Longe de Camden, onde todos sabiam sobre o crime ao qual foi vitimada, ela precisava viver um sonho de verão longe de tudo aquilo que a fazia sofrer.
Depois de se conhecerem num sábado de praia, passaram a tarde e a noite juntos. No domingo, foram à missa pela manhã, naquele que seria o último fim de semana antes da escola.
Já imersa no clima de romance, Sally perguntou cautelosamente à sua amiga se poderia aproveitar um pouco mais daquele momento: iria de carro com Edward até Vineland, Nova Jersey e de lá pegaria um ônibus de volta a Camden. Carol respondeu positivamente ao pedido, pois não queria privar a amiga de tudo aquilo que estava vivendo.
Na noite de 17 de agosto de 1952 Sally e Edward caminharam pelo calçadão da praia, sentaram-se em um banco, jantaram juntos, aproveitando até o final aquelas últimas horas de Wildwood. Tomaram a rodovia com destino a Vineland, com o avançar da noite.
Pouco depois da meia-noite, já 18 de agosto, a Polícia Estadual de Nova Jersey chegou ao local de um acidente com quatro veículos, em uma estrada conhecida como Woodbine Road. O carro de Edward Baker havia batido na traseira de um caminhão estacionado, que acabou se chocando contra outro caminhão parado. O impacto fez com que o segundo caminhão se deslocasse até a estrada, sendo batido por outro carro, que vinha em movimento.
Edward quebrou o joelho esquerdo e sofreu cortes no braço direito. Sally Horner morreu na hora.
A notícia
O funeral de Sally ocorreu no dia 22 de agosto de 1952, com a presença de mais de 300 pessoas.
Sua mãe, Ella Horner, recomeçou a vida com o novo companheiro chamado Arthur Burkett, em Pennsauken, a sete quilômetros de Camden. Nos anos 60, se mudaram para Palo Alto, na Califórnia e preferiram manter o silêncio em relação à dolorosa perda, algo transmitido para toda a família naquela e nas próximas gerações, como conta Sarah Weinman.
Edward Baker se tornou réu por “homicídio imprudente”, mas foi inocentado, com o caso sendo encerrado em 1954.
A notícia do acidente foi anunciada pela imprensa de todos os EUA, sempre com a lembrança de toda a terrível história de Sally a partir de seu sequestro, o seu resgate e recomeço de vida, até culminar no trágico desfecho.
Na manhã de 19 de agosto de 1952, o escritor Vladimir Nabokov abriu o jornal e se deparou com a história do acidente de Sally. Ele e a sua esposa, Véra Nabokov, se encontravam nas imediações de Afton, Wyoming, durante alguma das frequentes viagens que o casal costumava realizar de carro pelo país. Nestas oportunidades, ele descansava das suas atividades acadêmicas de professor da área de literatura, exercitava o seu hobby de caçar borboletas junto à esposa, além de dedicar-se à escrita.
O uso de notas soltas para o registro de ideias e referências era algo frequentemente usado pelo autor na construção de suas obras. Dentro deste trabalho de pesquisa, como afirmam alguns especialistas em Nabokov citados por Weinman, uma das principais obsessões do escritor eram as editorias policiais e o chamado true crime.
Sarah Weinman não sabe exatamente qual jornal exatamente foi lido com a notícia sobre Sally Horner, mas nos mostra algo registrado em uma nota escrita à mão por Nabokov, comprovando a importância do acontecimento para o autor, na época de seu processo criativo na criação de Lolita:
“Sally Horner, jovem de Camden, N. J., de 15 anos, que esteve 21 meses sequestrada por um delinquente sexual de meia-idade há alguns anos, faleceu em um acidente de estrada na primeira hora de segunda-feira. (…) Sally desapareceu de sua casa em Camden, em 1948 e não se soube nada dela até 1950, quando então relatou a desoladora história de 21 meses, tempo em que viveu como escrava de La Salle, de 52 anos, nesta viagem através do país.
La Salle, mecânico, foi preso em San José, Califórnia, (…) declarou-se culpado de duas acusações de sequestro e foi condenado a de 30 a 35 anos de prisão. Foi considerado um ‘leproso moral’ para o juiz. ”
Sarah Weinman teve acesso a recortes da imprensa, cartas, fotografias e diários do arquivo pessoal de Nabokov, liberados apenas em 2009, após um sigilo de 50 anos. Segundo a autora, é possível que Nabokov já conhecesse anteriormente os eventos envolvendo Sally Horner antes da morte da adolescente, mas a única prova documental mostrando o seu primeiro contato com o tema é esta nota de rascunho de seu acervo, após a notícia da morte de Sally.
Escrevendo Lolita
Três anos antes, em 1949, Vladimir Nabokov havia começado a colocar no papel algo que até então era apenas um projeto em construção: o romance Kingdom by the Sea, mais tarde nomeado como Lolita.
O tema da sexualidade de meninas pré-adolescentes e adolescentes e a obsessão de homens mais velhos por elas não era novidade na obra do autor. Sarah Weinman, apoiada também por estudiosos de Nabokov a quem se referencia, dá alguns exemplos, como no romance de estreia Mashenka e no poema Lilith.
Além da temática em si, alguns dos elementos de enredo que mais tarde fariam parte de Lolita já haviam aparecido, de maneira embrionária, em sua produção. Um exemplo é o parágrafo do romance de sua fase russa, Dar (The Gift, em inglês), escrito entre 1935 e 1937, mas somente publicado em 1952. Neste trecho, um personagem contempla a sua afilhada, bem mais jovem que ele, imaginando a narrativa de um possível romance. Naquela história imaginada, um homem velho passaria a viver com uma viúva e a sua filha, “muito pequena e frágil” e, como conta no livro, a partir dali passaria a enfrentar a “tentação, o eterno martírio, o desejo, as loucas esperanças”.
Já em Volshebnik (The Enchanter, em inglês), novela escrita em 1940, mas publicada post mortem, os elementos futuramente presentes em Lolita marcam maior presença ao longo do texto. Produzido em Paris, durante um período de fuga do nazismo e de problemas de saúde do autor, o livro possui um narrador (aqui anônimo) que sente atração por meninas muito jovens. Assim como citado rapidamente em Dar e mais profundamente na futura história de Lolita, o narrador usa a mãe de uma menina pré-adolescente para aproximar-se, com intenções sexuais. Neste caso, não lança mão de artifícios retóricos para justificar as suas obsessões ou mesmo o seu abuso físico, como faria o narrador Humbert Humbert de Lolita, mas expressa seu “tormento interior” desde o início.
Até aquele momento da escrita, quando finalmente se depara com a notícia de Sally Horner, os conceitos que há anos povoavam a cabeça do escritor russo já estavam plasmados, em certa medida, na primeira parte de Kingdom by the Sea, posteriormente Lolita.
Nesta primeira parte do livro, após uma introdução, onde o narrador, o francês Humbert Humbert, tenta justificar historicamente e filosoficamente a sua atração por meninas, vemos os fatos desencadeados após sua chegada aos EUA. Ele, professor de literatura, como Nabokov, vai morar na cidade fictícia de Ramsdale e hospeda-se na casa da pensionista Charlotte Haze, escolha motivada pelo interesse pedófilo em relação à filha da anfitriã, chamada Dolores Haze, de 12 anos, posteriormente apelidada por ele como Lo, Dolly ou Lolita.
Enfrentando uma relação difícil com a mãe, a menina Dolores é enviada a uma colônia de férias, com a ameaça, também, de ter que ir estudar em um colégio interno. Humbert Humbert acaba se casando com Charlotte para garantir a proximidade com Dolores, agora sua enteada, mas a mãe acaba descobrindo toda a verdade, através da leitura de seu diário. Após uma discussão com Humbert Humbert e impactada com a informação recebida, Dolores sai desesperada pela rua, morrendo em um atropelamento.
Os acontecimentos que se iniciam já no final da primeira parte de Lolita, mas se desenvolvem ao longo da segunda parte do romance, muito provavelmente possuem como inspiração a história de Sally Horner.
Ainda na primeira parte, Humbert Humbert retira Dolores da colônia de férias, mentindo ao afirmar que sua mãe, Charlotte, na verdade estava com problemas de saúde e não morta. As semelhanças entre a ficção nabokoviana e o caso real de Sally Horner já podem ser observados aqui, quando vemos a farsa capitaneada por Humbert, apresentando-se como pai de Dolores, durante uma estadia de ambos em um hotel e após toda a longa jornada posterior.
A segunda parte de Lolita inicia-se com a frase “Foi então que começaram nossas extensas viagens por todos os Estados Unidos” ***. O paralelo se torna aqui ainda mais estreito quando passamos a acompanhar, no livro, uma longa viagem pelo país de um homem de meia-idade junto a uma pré-adolescente, por quase dois anos, numa relação criminosa.
Assim como ocorreu de verdade com Sally Horner, a personagem Dolores também é matriculada em diferentes escolas através das cidades, mantendo-se a dissimulação de pai e filha imposta pelo criminoso.
Outra semelhança em relação a Frank La Salle está na forma com que Humbert Humbert mantém o processo de manipulação e coação, ameaçando Dolores com a possibilidade dela ter um reformatório juvenil como destino. Estas similitudes, como mostra Weinman, já haviam sido observadas desde 1963, pelo jornalista Peter Welding na Revista Nugget. Ele chamava a atenção para um trecho de Lolita, onde para manter o controle e evitar qualquer risco de fuga ou denúncia à polícia, Humbert Humbert ameaça Dolores, a esta altura já consciente da morte de sua mãe:
“(…) o que aconteceria caso viesse a queixar-se à polícia de ter sido raptada e violentada por mim? Vamos supor que acreditassem em você. (…) Quer dizer que vou para a cadeia. Mas o que aconteceria com você, minha órfã? Enquanto me agarro às grades da minha cela, você, feliz criança abandonada, poderá escolher entre várias possíveis residências, todas mais ou menos semelhantes: a escola correcional, o reformatório, o centro de detenção juvenil. (…)”
Humbert Humbert cita Sally Horner
As semelhanças entre a história real de Sally Horner e o enredo de Lolita, em especial na segunda parte, são muitas. Mas o elemento que mais chamou a atenção, desde o primeiro artigo de 1963, passando por alguns textos publicados sobre o assunto, culminando no trabalho de Sarah Weinman, é a citação direta ao caso real, em um trecho presente mais ao final de Lolita.
A referência a Sally Horner se dá em meio ao regresso de Humbert Humbert à cidade onde a história se inicia: Ramsdale.
Já haviam se passado dois anos após a fuga de Dolores Haze com outro predador sexual, chamado Clare Quilty, durante uma das viagens da adolescente com o narrador. Humbert Humbert, após responder ao apelo de uma carta de Dolores, também já havia se reencontrado com ela, já livre de Quilty, agora grávida e casada com o jovem engenheiro Dick Schiller. Depois de doar uma quantia em dinheiro a ela, a seu pedido, o narrador resolve procurar, em Ramsdale, alguma pista para encontrar Clare Quilty. Na busca por este outro pedófilo, (um “duplo” do próprio Humbert) havia uma intenção de “acerto de contas” com aquele sujeito, visto por ele como um bode expiatório das desgraças e descaminhos de sua vida.
Neste momento do romance, percebe-se em Humbert Humbert já um certo nível de culpa e mudança de auto-imagem. Ao tentar uma aproximação na rua, em seu entender amistosa, com uma menina de 9 ou 10 anos, o narrador logo é censurado por algum responsável, que o ataca “com olhos de fúria”. Neste momento, ele lembra de sua aparência física maltrapilha (em oposição aos seus antigos modos europeus refinados), além de perceber a si mesmo, através daquela reação mais aguda, como uma possível ameaça pedófila.
A importância narrativa aqui neste instante está em como Humbert Humbert começa a se enxergar nos olhos do outro, deparando-se inevitavelmente com os atos terríveis cometidos por ele.
Dentro deste mesmo momento de perturbação na visita à Ramsdale, presenciamos o seu reencontro fortuito com uma amiga da família de Charlotte e Dolores, a Senhora Chatfield. Segundo a percepção do narrador, a mulher o encara com um “sorriso falso, reluzente de curiosidade malévola”. É a partir dos pensamentos conflituosos de Humbert Humbert, permeados por uma mescla de culpa e paranoia, que veremos a citação direta sobre o caso real de Sally Horner, através de um parêntese:
“Era uma senhora baixa e socada vestindo cinza-pérola, com uma pluma comprida, cinzenta e fina fincada em seu chapeuzinho. Era a sra. Chatfield. E atacou-me com um sorriso falso, reluzente de curiosidade malévola. (Teria eu feito com Dolly, talvez, o que Frank La Salle, um mecânico de cinquenta anos, fizera com Sally Horner, uma menina de onze, em 1948?)”
O narrador não-confiável
Na introdução e no desenrolar de Lolita vemos Humbert Humbert operar diversas manobras argumentativas para justificar suas perversões, seja nos seus pensamentos ou mesmo na descrição das ações. A relação entre ele e Dolores, a partir da voz narrativa, é ambígua, sugerindo ora repulsa por parte da menina, ora uma resposta positiva às suas aproximações. Entretanto, mais ao final do romance, temos já um caminho rumo a uma auto-reflexividade sobre seus atos e a possibilidade, aberta a nós leitores, de questionamento sobre a veracidade do que havia narrado até ali.
A presença, no livro, desta referência direta ao sequestro de Sally Horner por Frank La Salle é a pista mais evidente sobre a provável influência do caso no desenvolvimento da escrita de Lolita, mas ao mesmo tempo também fala de alguns aspectos muito importantes relativos à voz narrativa.
Sarah Weinman, em A verdadeira Lolita, faz um caminho que parte das influências recebidas por Nabokov na escrita de Lolita, narra o seu processo criativo, menciona o intrincado processo de publicação do livro, chegando à recepção da obra e a construção problemática do ícone “ninfeta”, a partir do romance.
Através de um relato de caráter mais pessoal, a autora conta que o livro Lolita foi seu primeiro encontro “com um narrador não-confiável, alguém que se deveria olhar de forma desconfiada”. Segundo ela, “toda a obra versa sobre a crescente tensão entre o que Humbert Humbert deseja que o leitor saiba e o que este mesmo leitor é capaz de distinguir”. Ao pensar sobre a obra, Weinman nos fala:
“É muito fácil acabar sendo seduzido por sua sofisticada narração, suas descritivas descrições da vida nos EUA por volta de 1947 e suas observações sobre a menina que ele apelida de Lolita. Aqueles que amam a linguagem e a literatura são gratamente recompensados, mas também enganados. Se os leitores não tomarem cuidado, podem perder de vista o fato de que Humbert violentou repetidamente uma menina de 12 anos.”
A resposta de Véra Nabokov
Vladimir Nabokov nunca respondeu diretamente sobre as aproximações entre seu livro e a história verdadeira de Sally Horner. O mais próximo disso foi uma resposta, via carta, de Véra Nabokov, esposa de Vladimir, que segundo Sarah Weinman colocava-se como “guardiã de uma perspectiva singular da obra do marido, pondo o seu gênio criativo acima de outras questões”.
Ao ler o artigo de 1963 da Revista Nugget falando sobre as semelhanças entre livro e realidade, Alan Levin, então repórter do New York Post, enviou para Vladimir uma correspondência indagando sobre estas características. Na resposta dada por Véra, citada pelo jornalista em artigo de sua autoria (mas publicada na íntegra, no livro de Sarah Weinman), ela afirma que Vladimir Nabokov não chegou a ler o artigo da Nugget, mas faz ela questão de negar a inspiração neste ou em qualquer outro caso:
“(…) Na época em que escrevia LOLITA, (Nabokov) analisou um número considerável de casos (histórias “reais”), muitas das quais apresentam mais afinidades com a trama de LOLITA, comparada com a mencionada pelo senhor Welding. Esta última aparece citada na obra LOLITA. Não inspirou o livro. (…)”
Ao mencionar esta resposta, Sarah Weinman realiza, em The real Lolita, alguns questionamentos, entre eles o fato de Vladimir Nabokov ter guardado durante toda a vida a nota escrita sobre o caso, diferente de seus manuscritos, que foram queimados.
Mas, segundo a autora, qualquer especulação sobre Lolita ter inspiração em um uma história real iria contra a “crença nabokoviana” da arte como superior a qualquer influência.Esta é uma visão muito presente em muitas correntes da teoria literária moderna do século 20, com uma defesa da independência da literatura, em oposição a uma concepção baseada em referentes externos, onde se olharia entorno para compreender o texto. Assim, o livro seria um sistema fechado em si mesmo, ainda que utilize elementos do mundo material e histórico.
Por que saber sobre Sally Horner?
Então, por que alguém escreveria um livro como A verdadeira Lolita, baseado em uma possível influência de um caso real na escrita do celebrado romance de Nabokov?
Não se trata, aqui, de um mero conteúdo para alguma lista de curiosidades de almanaque sobre Lolita. O dedicado trabalho de investigação realizado por Sarah Weinman, buscando depoimentos, arquivos e outras fontes, resulta em um texto que possibilita outros olhares para personagens ficcionais, recuperando, também, a memória de pessoas reais, notadamente Sally Horner.
Desde o início do sucesso de Lolita, a figura da “ninfeta” foi alavancada por todos os cantos da cultura pop, como a própria Weinman mostra em seu texto, seja com adolescentes ou mulheres adultas infantilizadas. A imagem desta jovem fetichizada, combinando inocência com sedução, ganhou propagandas, filmes, músicas, cartazes e várias outras mídias, num olhar masculino romantizador do abuso infantil.
Ao perceber a inspiração no caso Sally Horner, adiciona-se uma nova camada interpretativa e um olhar crítico sobre um narrador não-confiável. Temos aqui não uma história de amor, não uma menina que “seduz” um homem mais velho, mas sim o sequestro de uma menina de 12 anos, Dolores Haze, através dos EUA, por quase dois anos. O fato do próprio algoz, Humbert Humbert, reconhecer posteriormente a possibilidade de comparação com a pessoa real do sequestrador Frank de La Salle, corrobora esta perspectiva.
Ao mesmo tempo, Sarah Weinman resgata a história de Sally Horner, uma jovem talentosa e repleta de sonhos.
Ao analisar relatórios e outros documentos policiais, a autora questiona a eficiência do FBI em resolver o problema, assim como o encerramento precoce daquele caso, enquanto o sequestro ainda ocorria. Desta forma, chama a atenção para um problema histórico envolvendo casos semelhantes, por parte das autoridades.
Weinman também cita a recepção dos leitores à primeira edição de The real Lolita, que desejavam saber mais sobre Sally Horner, “não como o arquétipo de uma vítima sequestrada e resgatada ou a inspiração para o romance de Vladimir Nabokov,” mas como uma pessoa real que viveu uma vida breve, mas existiu no nosso mundo.
Ao concluir seu livro, Sarah Weinman afirma que escrever é um ato solitário, publicá-lo, por sua vez, é uma ação comunitária, citando a curiosidade sempre crescente de novos públicos sobre a pessoa de Sally Horner:
“Não é possível dar vida a uma jovem falecida, mas cada vez mais gente é consciente do importante que foi, e segue sendo, Sally”.
Gabriel Barcelos Sotomaior
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Foto principal: Montagem feita por The Daily Beast
* O título original do livro é The Real Lolita: The Kidnapping of Sally Horner and the Novel That Scandalized the World. Ele foi publicado pela Ecco Press e ainda não tem tradução para o português.
** Todos os trechos citados são uma tradução livre feita a partir da versão em espanhol do livro, La autentica Lolita: El secuestro de Sally Horner y la novela que escandalizó el mundo, lançado pela editora Kailas.
*** Os trechos citados de Lolita, de Vladimir Nabokov, foram extraídos da tradução de Sergio Flaksman, lançada pela editora Alfaguara.
Bibliografia
Livro La autentica Lolita: El secuestro de Sally Horner y la novela que escandalizó el mundo. Editora Kailas, 2009. Tradução: Alfredo Blaco Solís.
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